Modelos de oferta legal de cannabis: evolução recente
Introduction
Análise: modelos de oferta legal de cannabis — evolução recente
O quadro jurídico internacional em matéria de controlo de droga assenta em três convenções das Nações Unidas, que instam todos os países a só permitirem a oferta e o consumo de drogas para finalidades médicas e científicas. No entanto, há um debate crescente sobre a legalização de drogas, em especial da cannabis, para fins não medicinais. Tais propostas suscitam preocupações quanto ao aumento do consumo e dos danos, bem como questões sobre a maneira de regulamentar cuidadosamente a distribuição de cannabis para usos não medicinais de modo a atenuar essas consequências negativas. Na União Europeia, os Países Baixos desenvolveram um sistema de distribuição limitada, que teve início na década de 1970 e sofreu algumas modificações nos últimos anos. No final de 2012, foram iniciadas propostas pormenorizadas de regulamentação da cannabis não medicinal em dois estados nos EUA e no Uruguai, as quais entraram em vigor em 2014, ano em que dois outros estados dos EUA e a cidade de Washington DC votaram a favor da autorização da oferta e da distribuição dessa droga. Estes modelos diferem entre si e estão a ser objeto de um exame atento, a fim de se compreenderem as vantagens e desvantagens de cada um dos sistemas regulamentares. Para além destes sistemas, o modelo dos «clubes sociais de cannabis» tem sido cada vez mais mencionado nos debates sobre as políticas em matéria de droga. Os seus defensores alegam que as políticas de não-acusação das pessoas a nível individual, adotadas em alguns países, também se podem aplicar a grupos de pessoas registados, permitindo a existência de um sistema fechado de produção e distribuição. Atualmente, este modelo é rejeitado pelas autoridades nacionais europeias.
Coffee shops nos Países Baixos: venda a retalho sem produção
Nos Países Baixos, o cultivo, a oferta e a posse de cannabis são infrações penais, sujeitas à aplicação de penas que poderão ser de prisão. Contudo, uma prática de tolerância, inicialmente instituída por orientações formuladas a nível local no ano de 1979, veio a dar lugar ao atual conceito de «coffee shops», estabelecimentos de venda de cannabis licenciados a nível municipal. Cerca de dois terços dos municípios não os autorizam, e o número de coffee shops têm vindo a diminuir progressivamente em todo o país: dos 846 existentes em 1999 restavam 614 em 2013. A venda de pequenas quantidades de cannabis a pessoas com mais de 18 anos de idade, nos coffee shops, é tolerada, com o intuito de manter os adultos que experimentam esta droga afastados de outras drogas, mais perigosas. O coffee shop pode ser encerrado, e o seu gerente ou proprietário alvo de ação judicial, se não cumprir os critérios estabelecidos pelo Procurador-Geral, os quais proíbem a publicidade, a perturbação da ordem pública, a venda a menores ou a não residentes, e a venda de drogas duras ou de álcool, além de limitarem as vendas a 5 gramas por transação. Em 2012, iniciou-se uma experiência de conversão dos coffee shops em clubes fechados, com membros registados, que foi abandonada no mesmo ano, mas desde janeiro de 2013 que os coffee shops só podem ser frequentados por pessoas residentes nos Países Baixos, devidamente documentadas com bilhete de identidade ou autorização de residência. No entanto, a adoção e a aplicação desta norma varia consoante os municípios. Uma proposta para que só possam ser vendidos nos coffee shops produtos de cannabis com um teor de THC inferior a 15 % continua pendente, enquanto as questões relativas à sua aplicação estão a ser analisadas. Não podem ser vendidos mais de 5 g por pessoa de cada vez e o coffee shop não está autorizado a ter mais de 500 g em armazém. Todavia, nos Países Baixos, o cultivo e a distribuição de grandes quantidades de cannabis não são tolerados, o que gera o chamado «problema da porta das traseiras», ou seja, as drogas podem ser vendidas «pela porta da frente», mas não podem ser fornecidas pela «das traseiras». Embora esta incoerência seja há muito objeto de debate, até agora não foi possível chegar a nenhuma solução. Em paralelo com o sistema dos coffee shops, o cultivo e a posse de pequenas quantidades de cannabis (até 5 g) para consumo pessoal não são, em princípio, alvo de ação judicial.
Uma avaliação da política de droga neerlandesa, efetuada em 2009, concluiu que os coffee shops eram a principal (mas não única) fonte de abastecimento de cannabis para os seus consumidores, que os mercados de drogas leves e duras se mantinham separados e que o consumo de cannabis pela população adulta era relativamente baixo em comparação com outros países europeus. Contudo, o consumo por menores era elevado (devido às coffee shops, à maior aceitação do consumo ou a outros fatores), o turismo «da droga» causava graves perturbações, e o setor era cada vez mais comercial e mais apetecível para a criminalidade organizada (1). As medidas jurídicas mais recentes foram, em parte, adotadas em resposta a esta avaliação. Em 1 de março de 2015, entrou em vigor um novo artigo da Lei do Ópio que proíbe as atividades de preparação ou promoção do cultivo e do tráfico ilegais de cannabis.
A legalização no continente americano: produção e venda a retalho
Em 2012, os eleitores dos estados do Colorado e de Washington, nos EUA, aprovaram propostas de criação de sistemas estaduais de distribuição regulamentada de cannabis para uso não medicinal (distintos dos sistemas de oferta de «marijuana medicinal» já existentes em 18 estados dos EUA). Os objetivos desses sistemas eram libertar recursos para o combate à criminalidade violenta e contra o património, regulamentar o comércio visível e obter receitas fiscais a partir do mesmo. À semelhança dos Países Baixos, utilizam estabelecimentos sujeitos a licença, estabelecem limites de idade (21 anos, como para o álcool), restringem a publicidade, restringem a posse ao consumo pessoal (1 onça/28 g) e proíbem o consumo em público. Ao contrário dos Países Baixos, estabelecem um sistema de licenciamento da produção e da transformação a nível estadual, destinado a abastecer os estabelecimentos de venda. Os sistemas entraram em funcionamento em janeiro de 2014, no Colorado, e em julho do mesmo ano, no estado de Washington. As normas de execução adotadas são semelhantes à regulamentação do álcool e do tabaco. Ambos os estados já tinham setores de produção e venda de cannabis para uso medicinal e, no caso do Colorado, a via constitucional de legalização da cannabis não medicinal e a existência de um poderoso setor de «cannabis medicinal» impediram que fossem adotadas normas estritas, principalmente destinadas a proteger a saúde pública. Até à data, não há dados significativos do Colorado ou do estado de Washington que confirmem as preocupações inicialmente formuladas quanto ao aumento da criminalidade e dos acidentes rodoviários, ou à perda de produtividade. Quanto aos efeitos sociais e de saúde a longo prazo, será necessário mais tempo para poderem ser adequadamente avaliados. Importa esclarecer que, em ambos os Estados, o uso medicinal de marijuana já era objeto de uma regulamentação mais tolerante há vários anos, pelo que esta evolução jurídica é mais gradual do que parece. Alguns profissionais de saúde manifestaram preocupações legítimas acerca da venda de produtos comestíveis muito potentes. No ano de 2015, o Colorado obteve receitas no valor de 114 milhões de dólares dos EUA, e o estado de Washington cerca de 129 milhões de dólares, em impostos sobre as vendas e taxas de licenciamento. Em novembro de 2014, os estados do Oregon e do Alasca votaram a favor de sistemas regulamentares semelhantes, e Washington DC aprovou um sistema que apenas legalizou o cultivo doméstico e a transmissão não comercial de cannabis em quantidade não superior a 28 g (ou seja, não há estabelecimentos de venda). Uma vez mais, já existiam mercados de marijuana medicinal, facto que confirma que a transição para a legalização da cannabis não medicinal deve ser gradual. No Oregon, os vendedores de marijuana medicinal podem vender marijuana não medicinal entre outubro de 2015 e o final de 2016, altura em que serão licenciados locais de venda separados. No Alasca, ao contrário dos outros estados, está previsto o consumo a retalho e no local («coffe shops»).
Estes sistemas estaduais infringem diretamente a legislação federal dos EUA, que classifica a posse e a oferta de cannabis como infrações penais. Em agosto de 2013, o Departamento de Justiça dos EUA emitiu orientações destinadas aos procuradores federais, instruindo-os para darem prioridade a oito domínios de aplicação da lei, designadamente a venda a menores de idade, a canalização das receitas para gangues criminosos e o desvio de cannabis para outros estados (2). Fora destes domínios, o governo federal confia aos estados a aplicação das leis respetivas. Em fevereiro de 2014 foram emitidas novas orientações destinadas às instituições financeiras, exortando-as a prestar serviços a empresas que negoceiem com marijuana (3). Este também é um crime federal, mas a dimensão das transações em numerário e da sua armazenagem já constituía, só por si, um problema para as forças de aplicação da lei. Entretanto, estão a ser elaboradas propostas de regulamentação semelhantes em vários outros estados dos EUA, as quais deverão ser apresentadas em novembro de 2016, embora no estado de Vermont seja o poder legislativo, e não os eleitores, que manifesta interesse na adoção de um modelo regulamentar.
No Uruguai, uma lei nacional de 2013 permite que o Estado regulamente a oferta e o consumo de cannabis através de três canais. A lei permite que os consumidores registados a cultivem a nível doméstico, pertençam a um clube social de cannabis, ou adquiram cannabis regulamentada em farmácias licenciadas pelo Estado. O seu objetivo é reduzir os danos causados pelo mercado ilícito e criar oportunidades de educação e prevenção. Todos os consumidores devem inscrever-se num registo estatal administrado pelo Instituto de Controlo e Regulamentação da Cannabis (IRCCA). Os consumidores podem ter em casa seis plantas em flor, no máximo, comprar até 40 g de cannabis por mês numa farmácia, ou aderir a um clube de cannabis que tenha 15 a 45 membros e cultive até 99 plantas. Também neste caso, todos os produtores e consumidores devem estar registados no IRCCA. O cultivo ou a oferta não autorizados continuam a ser puníveis com penas de prisão, que podem variar entre 20 meses e 10 anos. Embora os modelos de cultivo doméstico ou em clubes tenham entrado em funcionamento em outubro de 2014, a venda em farmácias foi atrasada por problemas de cultivo, e o seu início está agora previsto para o final de 2016.
A CICAD, Comissão Interamericana para o Controlo do Abuso de Drogas (4) publicou uma comparação mais pormenorizada das regulamentações da cannabis na América do Norte e do Sul.
Comparação das legislações
Países Baixos | Estado de Washington | Estado do Colorado | Uruguai | Estado do Oregon | Estado do Alasca | Distrito de Columbia | |
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Nível regulamentar | Orientações do Procurador-Geral Nacional | Legislação estadual (conflito com a legislação federal) | Constituição estadual (conflito com a legislação federal) | Legislação Nacional | Legislação estadual (conflito com a legislação federal) | Legislação estadual (conflito com a legislação federal) | Legislação estadual (conflito com a legislação federal) |
Entidade reguladora | Município | Washington State Liquor Control Board | Colorado Department of Revenue | Instituto de Controlo e Regulamentação da Cannabis | Oregon Liquor Control Commission (LCC) | Alcoholic Beverage Control Board | N/D |
Idade limite para posse | 18 | 21 | 21 | 18 | 21 | 21 | 21 |
Cultivo doméstico | Proibido, mas sem punição se não mais que cinco plantas para consumo pessoal | Não permitido | Até seis plantas, três em flor (não podem ser vendidas) | Até seis plantas/480 g | Até quatro plantas | Até seis plantas | Seis plantas, apenas três em flor. Não mais de 12 plantas no total, numa unidade com vários ocupantes. |
Quantidade máxima permitida para posse | Nenhuma, mas sem investigação se inferior a 5 g | 1 onça (28,5 g) | 1 onça (28,5 g) | 40 g | 1 onça (28,5 g) | 1 onça (28,5 g) | 2 onças (57 g) |
Gráfico animado: o que é a descriminalização das drogas?
Termos e definições
A terminologia nesta área é, muitas vezes, confusa, mas em termos simples, importa estabelecer as seguintes distinções:
Descriminalização refere-se à remoção de determinado comportamento ou ação como crime. Tal não significa, porém, que esse comportamento se tenha tornado legal, uma vez que ainda pode ser objeto de sanções de caráter não penal. No âmbito do debate sobre a droga, este conceito é habitualmente utilizado para designar as leis relativas ao consumo e à posse para consumo pessoal, e não à oferta de droga.
Despenalização refere-se à possibilidade ou à política de encerrar um processo penal sem aplicar uma pena, por exemplo, por se considerar que o caso é «pouco importante», ou que não é «do interesse público» mover uma ação judicial.
Legalização implica tornar legal um ato que antes era proibido. No contexto da droga, indica, normalmente, que todas as sanções, penais ou não penais, são eliminadas, embora outros regulamentos possam limitar a amplitude dessa permissão. É um termo geralmente utilizado no contexto da oferta de droga.
O termo regulamentação implica a imposição de um conjunto de regras e restrições à oferta ou ao consumo de uma substância, como é o caso do álcool e do tabaco. Os sistemas regulamentares costumam limitar o acesso, designadamente através de limites de idade e do controlo dos estabelecimentos de venda, além de poderem restringir a publicidade. As sanções aplicadas por violação destas regras podem ser penais ou não penais.
Clubes sociais de cannabis: produção sem venda a retalho
Os clubes sociais de cannabis funcionam com base no princípio de que, se uma pessoa não será alvo de ação judicial por cultivar, em privado, uma planta de cannabis para consumo próprio, 20 pessoas que cultivem 20 plantas em conjunto, de forma privada, para consumo próprio também não serão alvo de qualquer ação judicial. Claro que este conceito levanta alguns problemas. A definição do que constitui uma produção «comum», por exemplo, é problemática e suscita a questão geral de saber como distinguir juridicamente tais atividades das infrações por oferta de droga. Na União Europeia, as próprias infrações por oferta de droga têm diferentes definições jurídicas, mas normalmente implicam que haja transferência de drogas entre as pessoas e também lhes podem ser aplicados alguns critérios respeitantes à quantidade.
Em resposta a esta situação, os clubes sociais de cannabis têm tentado estabelecer regras de funcionamento que lhes permitam evitar acusações de tráfico, oferta de droga ou incentivo ao consumo de droga. Por exemplo, o grupo de ativistas Encod (1) propôs que os clubes funcionassem ao abrigo de uma convenção coletiva, com um registo dos membros, calculando-se os custos de modo a refletir o consumo individual previsto e limitando a quantidade produzida por pessoa ao seu consumo imediato. Os clubes estariam fechados ao público e os novos membros deveriam ser consumidores comprovados de cannabis e unicamente aceites por convite. Este modelo, embora promovido por ativistas da Bélgica, França, Espanha e Alemanha, não é aceite pelas autoridades nacionais de nenhum país europeu. Isto significa que os clubes sociais de cannabis estarão sujeitos a sanções, se forem identificados, ou que, na melhor das hipóteses, poderão funcionar numa zona de legalidade duvidosa.
Atualmente, é difícil determinar quantos clubes destes existem na Europa, embora pareçam ser raros. Em 2011, a cidade de Utrecht, nos Países Baixos, anunciou um projeto para criar um clube desse tipo, mas por enquanto ainda não o executou. Alguns clubes afirmam desenvolver uma atividade limitada em algumas regiões de Espanha, aproveitando o facto de, apesar de a lei espanhola proibir a produção, a oferta e a posse de cannabis para consumo pessoal em público, a sua posse em espaços privados não ser penalizada. A posição da lei sobre o consumo partilhado é mais complicada, porém, em 2015, três acórdãos do Supremo Tribunal de Espanha concluíram que o cultivo e a distribuição organizados, institucionalizados e persistentes de cannabis dentro de uma associação aberta a novos membros são considerados tráfico de droga.